FAILACE, R. et al. Hemograma – manual de
interpretação. – 5. Ed. –
Porto Alegre: Artemed, 2009
A infecção pelo HIV afeta a tal ponto
as células sanguíneas que se justifica fazer a pesquisa de anticorpos sempre
que um hemograma mostrar citopenias sem explicação evidente.
De 10 a 30 dias após o contágio, costuma haver uma
doença febril, com linfócitos atípicos no sangue, com cura espontânea. A progressão
a seguir é assintomática, salvo discretas linfonodomegalias, na maioria
cervicais, em alguns pacientes, mas há intensa proliferação do vírus nos
linfócitos T-helper CD4+
(resumidamente CD4), 2% dos quais estão no sangue circulante e em torno de 98%
nos tecidos e órgãos linfoides. A sintomatologia da infecção (=aids) em
aproximadamente 50%, até 10 anos e aproximadamente 10% dos pacientes
ultrapassam 20 anos sem sintomas da doença.
No hemograma, a mais constante alteração é a baixa
progressiva de linfócitos CD4 por efeito citopático direto do vírus. Como são
os linfócitos predominantes no sangue (50 a 60%), a diminuição causa
linfocitopenia global. A identificação/contagem dos subtipos de linfócitos é
feita por citometria de fluxo; já há contadores eletrônicos próprios para
hemograma que, com software especial,
fazem essa determinação. Como os linfócitos CD4 têm papel central na resposta
imunológica, os demais leucócitos alteram-se secundariamente. Sem CD4, os
linfócitos T-supressor CD8+ (resumidamente,
CD8), os linfócitos natural killer (NK)
e os monócitos-macrófagos não desenvolvem respostas antivirais apropriadas. O HIV
estimula os linfócitos B na formação de autoanticorpos e de anticorpos a
antígenos já conhecidos; há hipergamaglobulinemia policlonal, mas a formação de
anticorpos contra novos antígenos é deficiente.
O número critico de linfócitos CD4, abaixo do qual
costuma instruir-se a terapia antiviral, foi arbitrado em 350/µL. Com o controle da proliferação do víssarus pelo coquetel
atual, embora seja raro haver aumento, há estabilização durável do número de
CD4 e da resposta imunológica. Com CD4 < 200/µL, institui-se profilaxia de
infecções oportunísticas.
As séries mieloides são também comprometidas:
Anemia: está presente em 10% dos pacientes
assintomáticos, em 50% dos pacientes com linfonodomegalias e em 80% dos
pacientes com aids declarada. Tem as características hematológicas usuais da
anemia das doenças crônicas. São mecanismos operantes:
·
Mecanismos
usuais de ADC em todos os pacientes.
·
Iatrogenia
própria da zidovudina (AZT) ou estavudina: a anemia instala-se a partir do 2º mês
de tratamento, é macrocítica e progressiva. A anemia pode ser severa a ponto de
exigir reposição transfusional. É reversível com a cessação do uso da droga e
responde a tratamento com rHu-Epo.
·
Hemólise
autoimune, com Coombs-positivo, em 5 a 10% dos casos.
·
Granulomatose
na medula, especialmente por Mycobacterium
aviarium. Intensificação da anemia acompanhada de neutropenia ou
trombocitopenia exige biópsia da medula óssea.
·
Infecção
por parvovírus: a parvovirose sempre causa uma aplasia eritroide fugaz; como em
pacientes com aids a infecção é persistente por deficiência da resposta
imunitária, a aplasia torna-se duradoura. Há rereticulopenia e anemia extremas;
costuma responder ao tratamento com imunoglobulina humana intravenosa.
·
Infiltração
da medula por lilnfomas aids-correlatos.
Neutropenia: é notada na evolução da aids em 50 a
70% dos casos.
São mecanismos operantes:
·
Inibição
da mielopoese pelas drogas antivirais ou anti-infecciosas.
·
Replicação
inadequada das células mieloides infectadas pelo HIV.
·
Virose
coexistentes.
·
Leucoaglutininas
oriundas de disfunção autoimune dos linfócitos B.
·
Alteração
das citoquinas e fatores de crescimento.
·
Infiltração
da medula por linfomas aids-correlatos.
Trombocitopenia: está presente em mais de 30% dos
pacientes. Na experiência do autor, tem sido várias vezes o sinal que levou ao
diagnostico. Geralmente decorre de anticorpos antiplaquetas oriundas da
imunidade alterada e/ou da presença de complexos imunes que se adsorvem às
plaquetas e causam sequestração no sistema macrofágico. Inibição da megacariocitopoese
pelo HIV, por outros vírus ou por drogas pode ser coadjuvante. Quando autoimune,
a trombocitopenia melhora com o uso de corticoides e com a esplenectomia, mas
ambos são procedimentos inaceitáveis por piorarem a imunidade já comprometida.
Desde o início dessa tragédia médica do fim do segundo
milênio, tem-se notado que os pacientes com aids são propensos, 20 a 100 vezes
mais que a população geral, ao desenvolvimento de linfomas B. predominam os
linfomas Burkitt e Burkitt-like, os
linfomas difusos de grandes células e os antes raríssimos linfomas primários do
sistema nervoso central, todos de elevada malignidade. As deficiências imunológicas
e da hematopoese impedem uma quimioterapia eficaz; a sobrevida mediana é de
poucos meses, e a mortalidade, total.
O sarcoma de Kaposi correlaciona-se com a doença
avançada, mas não diretamente com alterações hematológicas.